Preparação e ajustes realizados em um carro de corrida

No automobilismo uma máxima circula entre os paddocks mundo afora: “Sem dados você é apenas mais um com uma opinião”. Esqueça a época em que o automobilismo era algo rústico, onde tudo era realizado com muito improviso até mesmo nas categorias mais profissionais. Faz décadas que essa mentalidade mudou, pois o automobilismo, se bem observado, tornou-se uma indústria. Dessa forma, é importante entender que para se sobressair é preciso conhecimento e métodos de trabalho eficazes.

Este artigo tem como objetivo demonstrar os cuidados, medições e procedimentos de acerto de carros de corrida.

Métodos de trabalho

Antes de iniciar qualquer procedimento de acerto ou regulagem em veículo de competição, deve-se garantir três atividade tão importantes quanto as configurações do carro. São estas:

  • Precisão dos dados;
  • Repetibilidade das medidas;
  • Documentação das medições.

Precisão dos dados

Um automóvel possui peças nas quais as tolerâncias podem variar, algumas sendo bem apertadas e precisas, outras não restritas. A tolerância de uma peça está de acordo com sua atividade e se esta requer uma precisão elevada. Quanto maior a precisão, maior o custo de tudo que envolve este componente.

Durante o acerto, nos deparamos com uma série de dados que devem ser reportados aos demais membros da equipe, e isso inclui mecânicos, técnicos, engenheiros e até mesmo o pessoal de laboratório. Portanto, é importante definir uma precisão adequada, que seja de fácil interpretação por todos da equipe e, mais importante, que esteja de acordo com a sensibilidade desses parâmetros.

Repetibilidade das medições

Os fábricas de automóveis são peritos em utilizar metodologias efetivas de trabalho, para garantir que as medições sejam fáceis de realizar e tenham a mínima variação. A metodologia 6 Sigma é largamente utilizada, pois não só permite que os setores de qualidade e engenharia consigam enxergar um problema mais facilmente, como também consigam realizar as medidas rapidamente e interpretá-las chegando a causa-raiz do problema.

No mundo das competições automotivas não é diferente, o principal que é realizar medidas e interpretá-las é um dos pilares movem um time de corrida. Acertar um carro de corrida é, em suma, realizar medidas e documentá-las. Para que isso possa acontecer de forma confiável, é importante estabelecer um procedimento de acerto e registrá-lo, além de garantir que os métodos de medição sejam efetivos.

Isso é, basicamente, uma metodologia 6 Sigma, pois documentamos as medidas, criamos procedimentos de medição e até ferramentas de medição. Entretanto, diferente das fábricas, o objetivo aqui é compreender as reações do automóvel com o meio. Portanto, deve-se garantir que os procedimentos de acerto sejam sempre os mesmos, desde que sejam os mais rápidos e eficazes possível, e que as ferramentas de medição permitam leituras rápidas e fáceis dos valores medidos.

Documentação das medições

As equipes de corridas sempre documentam suas medições, não apenas os acertos realizados nos veículos, até as condições climáticas são registradas. A razão é simples, criar um banco de dados dos circuitos gerando um histórico de informações que ajudam o time a estabelecer pré-acertos ou procedimentos antes mesmo de se iniciarem os treinos livres. Dessa forma é possível colocar na pista, já nos primeiros minutos, um carro um acerto quase pronto para o dia da corrida. Esse é um dos motivos da documentação das medições que uma equipe de corrida faz.

Em termos de acerto, o registro é importante para compreender as reações do veículo antes que este venha a executar dezenas de volta na pista. Um histórico deste também é realizado, e pode ser pareado com alterações do circuito ao longo das temporadas, como por exemplo, trocas de asfalto.

Procedimento

Antes de iniciar o procedimento de acerto é necessário alguns preparativos para o mesmo:

  1. Montar veículo com os componentes da suspensão como amortecedores, braços de controle (aquele que ajusta o camber), braços e qualquer outro componente com ajuste, em posições idênticas, ou seja, com os mesmo ajustes;
  2. Garantir que zona de medição esteja limpa e plana. Nesse momento nenhum irregularidade é admitida, caso contrário qualquer medida de peso, altura ou parâmetro de alinhamento estarão totalmente comprometidas;
  3. Regular todos os amortecedores na configuração mais suave possível. O objetivo é deixar o atrito da suspensão o menor possível;
  4. Desconectar as barras estabilizadoras (barra anti-rolagem);
  5. O veículo deve estar abastecido com o nível adequado de combustível. Esse nível deve próximo do nível de combustível o veículo terá na pista durante a corrida, ou seja, não pode ser totalmente cheio de combustível, como também com pouco combustível, que é usualmente colocado para voltas de qualificação. Além disso, o veículo deve ser medido considerando o peso piloto, usando o próprio piloto dentro do veículo ou algum lastro no assento.
  6. Centralizar e fixar o volante, para que este não venha a se mexer durante as modificações realizadas na suspensão;
  7. Montar as rodas que serão utilizadas na competição, garantindo sempre que, estejam limpas, com pressão de pneu a quente e de preferência, sejam novas. Além disso, é importante checar a circunferência dos pneus, pois um pneu defeituoso com circunferência diferente da especificada pode gerar distorções nas medidas realizadas.

Os preparativos acima são realizados com o veículo montado em uma estrutura com quatro balanças, quatro suportes, e dois conjuntos de hastes para linhas. As balanças são colocadas no chão plano, sobre estas estão os suportes, que são montados no lugar das rodas do veículo. Estes suportes permitem a instalação de ferramentas de medição do camber e da convergência. Os conjuntos de hastes são, na realidade, suportes nos quais são amarradas linhas nylon, e estas utilizadas para as medições de convergência.

O procedimento de acerto de um carro de corrida possui as seguintes etapas:

  1. Altura em relação ao solo;
  2. Cambagem;
  3. Convergência;
  4. Corner weight.

Altura em relação ao solo

O acerto do carro começa com as medições da altura deste em relação ao solo, pois caso fosse realizado posteriormente, alteraria as medidas de outros parâmetros ajustáveis, como a cambagem, por exemplo. Para realizar essa medição é necessário localizar pontos no veículo que seja possível medir a altura deste em relação ao solo rapidamente. Carros desenvolvidos especialmente para competições, costumam possuir em seu assoalho (underbody) pontos definidos especialmente para essa medida. Veículos de competições estudantis como o F-SAE e o Baja também são construídos com tais pontos, sempre buscando uma forma rápida e fácil de medir.

As primeiras medidas a serem realizadas são as das rodas do lado esquerdo, posteriormente, mede-se as rodas do lado direito. Essas medidas são convertidas na altura da linha de centro dos eixos dianteiro e traseiro, na altura na linha de centro do chassi e do centro do ponto de contato dos pneus, medidas de altura longitudinal e lateral, respectivamente.

Para que isso seja possível, é necessário saber o quão distante dos eixos estão os pontos de medição de altura, como pode ser visualizado na foto abaixo.

Foto: Apostila curso Jorge Segers – Motorsport Engineering.

Ao medir as distâncias A e B, a distância entre eixo WB e as altura h1 e h2, utilizamos as seguintes equações para encontrar a altura dos eixos dianteiro e da traseiro do veículo em relação ao solo:

RHfront = (A(h2 – h1)/(WB + A – B)) + h1

RHrear = ((WB + A)(h2 – h1)/(WB + A – B)) + h1

A altura na linha de centro do chassi, ou seja, sobre a linha longitudinal deste e a altura das laterais, sobre as linhas de centro das rodas são obtidas medindo as alturas do chassi em relação ao solo, e a distância dos pontos de medição para as linhas de centro do chassi e dos pneus. A figura abaixo demonstra como essas medidas são realizadas.

Foto: Apostila curso Jorge Segers – Motorsport Engineering.

Portanto, após esses cálculos é possível definir a altura em relação ao solo de veículo em quatro pontos, da linha de centro do chassi, da linha de centro de cada roda, e nos quatro pontos definidos no veículo.

Camber

A cambagem de um carro de corrida é medida e acertada da mesma que em um carro de rua, a única diferença é que nestes a medição e regulagem são realizados com as rodas no seu lugar. No veículo de corrida existem suportes no lugar das rodas, de forma que o acesso dos técnicos as peças reguláveis é mais fácil.

Em geral, a regulagem de camber é realizada por meio de porcas ou por colocação de pequenas lâminas metálicas que alteram o comprimento do braço de suspensão, logo alterando o posicionamento vertical da roda.

A cambagem é um acerto que influencia no formato e na distribuição de pressão da banda de rodagem com a pista. Em geral, carros de competição utilizam valores de cambagem negativos, ou seja, com o veículo visto de frente, as rodas estão inclinadas de forma que a parte superior linha de centro da roda esteja inclinada para dentro. Esse tipo de acerto melhora consideravelmente o apoio dos pneus na pista enquanto o veículo contorna uma curva, porém, valores exageradamente negativos prejudicam a frenagem do veículo, justamente devido a alteração do ponto de contato.

As medidas de cambagem são melhor interpretados quando se relaciona a angulação da roda contra a espessura de todas chapas colocadas no braço de suspensão.

Convergência

A convergência é um parâmetro que deve ser acertado com cautela, uma vez que influencia na habilidade do veículo fazer curvas e no controle ao sair desta. É importante entender, que a convergência acaba tomando um pouco da capacidade de velocidade máxima do veículo na maior reta do circuito, sendo importante a conciliação dos valores ajustados.

Basicamente, a convergência das rodas do eixo dianteiro alteram a estabilidade do veículo durante a frenagem e a habilidade do veículo na entrada de curvas. No caso das rodas do eixo traseiro, a convergência está diretamente ligada na estabilidade do veículo nas saídas de curva, ou seja, naqueles momentos no qual o piloto começa a re-acelerar o veículo.

Na dianteira é interessante que as rodas sejam levemente divergentes, pois valores muito divergentes pode alterar a cambagem, e assim prejudicar o acerto de camber anteriormente realizado. Na traseira é oposto, mante-se as rodas levemente convergentes, pois no contorno de curvas, ao acelerar, as rodas estão apontando para dentro da curva, auxiliando no contorno da saída desta. Esse tipo de ajuste é comum em carros de rua com tração traseira, para que estes tenham um comportamento mais previsível.

O ajuste da convergência é crítico, pois leva em consideração que os pontos de medição estejam perfeitamente simétricos em relação a linha de centro do chassi.

Corner weight

Trata-se da carga sobre cada uma das rodas. Em inglês esse parâmetro é chamado de Corner Weights, e trata-se da quantidade de carga medida sobre rodas diagonalmente opostas. Por exemplo, a quantidade de carga nas rodas dianteira esquerda e traseira direita são medidas juntamente, o mesmo é realizado na roda dianteira direita e traseira esquerda.

O objetivo é obter uma distribuição de 50% do peso do veículo em cada diagonal, assim o carro está balanceado simetricamente, sem diferença de carga significativa entre as rodas de cada lado. A medida do corner weight é realizada através das balanças nas quais o veículo repousa, essa medida varia conforme os ajustes de mola são alterados. Por exemplo, se uma das molas é ajustada para ser mais dura, ou seja, trabalhar mais comprimida, estamos, na realidade, transferindo a carga que essa mola estaria exercendo sobre o pneu para o pneu diagonalmente oposto.

A altura em relação ao solo é acertada no começo, pois o corner weight valor tem bastante influência do ajuste das molas. O corner weight é um dos parâmetros que, são interessantes de se utilizar tendo como base os resultados das simulações.

Legenda: RF – Right front, LR – Left rear, LF – Left front e Right rear. Foto: Apostila curso Jorge Segers – Motorsport Engineering.

No exemplo da foto acima vemos o resultado medição de corner weight de um veículo de 1.190 Kg. No início do procedimento de acerto, as balanças indicaram 288, 277, 310 e 315 kg e 55, 54, 87 e 86 mm nas rodas dianteira esquerda, dianteira direita, traseira esquerda e traseira direita, respectivamente. Verificamos que, o Cross, medida da quantidade de carga de diagonal está levemente desequilibrado, 50,67%. Isso significa que, as rodas dianteira esquerda e traseira direita possuem mais carga que as rodas da outra diagonal, em outras palavras, o carro é ligeiramente melhor em curvas a esquerda.

Foto: Apostila curso Jorge Segers – Motorsport Engineering.

Após as modificações na suspensão, as medidas no final do procedimento indicaram os valores acima. Isso indica que, retirou-se 4 kg de carga da roda dianteira esquerda, ou seja, comprimiu um pouco mais sua mola. Essa carga de 4 kg não se perdeu, na realidade esta foi transferida para mola da roda traseira direita. Perceba, que esta reduziu em 4 kg a sua carga, não foi coincidência.

Além disso, também houve modificações na outra diagonal, onde a roda dianteira direita ganhou 4 kg de carga, ou seja, a mola foi descomprimida (estendida) numa determinada quantidade de roscas que resultou em um ganho de 4 kg na roda e no aumento da altura em relação ao solo em 1,00 mm, passando a 55,00 mm. Dessa forma, a roda traseira do veículo ganhou, também, 4 kg. Dessa forma, o novo acerto possui diagonais com 595 Kg de carga, totalizando 50% do peso total do veículo.

Desse acerto podemos dizer que, as rodas traseiras possuem mais carga que as rodas dianteiras, portanto as rodas traseiras terão menos condições de lidar com as cargas devido a transferência lateral de carga em curvas, uma vez que as rodas já estão bem carregadas com o peso do veículo. O veículo terá tendências ao sobreesterço. Por outro lado, o veículo está equilibrado no Cross, não haverá diferenças perceptíveis em curvas de ambos os lados.

Não se surpreenda com o fato de que as cargas entre as rodas de mesmo eixo sejam diferentes, nesse caso, é mais importante obter um Cross de 50,00%. Uma distribuição de carga igual em cada roda não apenas seria extremamente difícil de se obter, como daria ao carro reações que os pilotos não compreenderiam. É importante lembrar também, que o trem de força dos automóveis tem grande efeito na sua distribuição peso, sendo natural o desequilíbrio de carga entre os eixos. Portanto, é mais importante focar na distribuição diagonal em 50%.

Pós acerto

Após o acerto do veículo é importante atentar para alguns procedimentos, como medir o comprimento das molas, batedores e packers. O objetivo é deixar registrado as medidas desses componentes para verificações posteriores, por exemplo, se um batedor apresentar menor do que o medido antes da ida para a pista, significa que esta suspensão está chegando no fim de curso muito facilmente e que precisa ser revisto o seu acerto.

Caso tenham sido afrouxados, os suportes das molas devem ser apertados novamente e com o torque indicado pelo fabricante. Como o volante foi fixado, deve-se remover todos as ferramentas que fixam o volante. Os acertos de aerodinâmica, se o veículo possuir, devem ser feitos com o veículo ainda sobre superfície plana, de preferência em cima do gabarito.  Acertar o balanço de freio, embora esse parâmetro seja um pouco subjetivo e ao gosto do piloto.

É importante zerar todos os sensores que veículo possuir e que estejam relacionados com os componentes e sistemas alterados durante o acerto, pois uma vez que modificações mecânicas foram realizadas, estes sensores acabam perdendo sua referência e podem indicar valores errôneos e até falhas que não existem. Dentre estes sensores estão o sensor de curso da suspensão, sensor de altura em relação ao solo, de aceleração lateral e longitudinal, de posição angular do volante.

Por fim, sempre documentar todas medidas realizadas.

Referências

  • Segers. J. Analisys Tequiniques for Racecar Data Acquisition, 1° Edição. Warrendale, PA. SAE International. 2008.